Hélène Bertrand de
Beauvoir em seu atelier em Goxwiller, próximo a Strasbourg.
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As mulheres sofrem,
os homens julgam (1977).
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Hélène Bertrand de Beauvoir, pintora francesa e
irmã caçula de Simone de Beauvoir, nasceu em 6 de junho de 1910 em Paris e
morreu aos 91 anos em 1º de julho de 2001 em Goxwiller, Alsácia. Hélène era filha de Georges de Beauvoir
e de Françoise Brasseur e irmã caçula da filósofa, escritora e feminista Simone
de Beauvoir. Muito jovem casou-se com Lionel de Roulet, o grande amor de sua
vida.
Na juventude, (assim como sua irmã, Simone, algum
tempo antes) foi matriculada no Curso Desir, uma escola para meninas de boas
famílias. As irmãs Beauvoir eram alunas brilhantes. Por ser mais velha, Simone
tinha muito mais liberdade que a caçula, o que não as impedia de serem muito
ligadas e cúmplices. A mais nova admirava a mais velha e, às vezes, procurava
imitá-la e até mesmo se destacar entre suas outras amizades, sobretudo
demonstrando seus talentos num jornal satírico que ela criou na escola. Suas
notas, porém, começaram a ser afetadas, e os pais tiveram que interferir
abreviando este sucesso. Mesmo que não imaginasse o futuro como pintora, Hélène
demonstrava cada vez mais sua atração pela pintura, ficando horas a fio diante
dos quadros do Louvre. Este interesse em relação a uma atividade artística a
aproximou mais de sua irmã. Ambas se divertiam juntas, uma escrevendo
histórias, a outra se encarregando de ilustrá-las.
Apesar de uma educação piedosa recebida da mãe, as
duas irmãs muito cedo se descobriram ateias1: “As duas meninas se haviam
afastado da casa de Deus.” Após terminar o Baccalauréat (ensino médio), apesar
da relutância de sua mãe em vê-la prosseguir seus estudos, Hélène começou a
estudar numa escola técnica, onde aprendeu sobretudo a gravura.
Simultaneamente, estudou pintura em diversas academias de Montparnasse,
adquirindo um gosto por croquis que nunca mais a deixaria.
Algum tempo depois, Lionel caiu doente afetado por
uma tuberculose óssea, e precisou ficar internado num sanatório em Berck. Retornou
a Paris em setembro de 1939, mas pouco depois partiu para a casa de sua mãe em
Portugal, para lá convalescer. Em 3 de setembro, a França entrou na Segunda
Guerra Mundial. Simone ajudou a irmã a viajar para encontrar Lionel em
Portugal, ficando assim em segurança durante o conflito. Após a invasão da
França pela Alemanha, as fronteiras francesas foram fechadas, obrigando o casal
a permanecer em Portugal. A correspondência com a França ocupada era difícil, e
Hélène não conseguia ter notícias de sua família. Somente após seis meses ela
foi informada da morte de seu pai, através de uma longa carta de Simone, contando
que Georges de Beauvoir havia morrido em 1ª de julho de 1941 devido a um câncer
na próstata. As irmãs só se reencontrariam em março de 1945, quando Lionel
convidou Simone para fazer um ciclo de conferências. Ele havia sido encarregado
de fundar em Faro, Algarve (no Sul de Portugal) um instituto francês, evitando contar a Hélène que tratava-se de promover, por este meio, a França livre no
estrangeiro. Hélène e Lionel haviam se casado em dezembro de 1942, a fim de
evitar a deportação dele para a Argélia no caso de uma invasão a Portugal pelos
nazistas.
Naquele país, Hélène trabalhou muito sua técnica, e
sua obra já contava com 100 quadros. Mas ela sonhava em voltar a Paris, a fim
de obter um reconhecimento tal qual o de sua irmã, que havia publicado com
sucesso seu primeiro romance, L’Invitée4 (A
Convidada) em 1943.
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Lionel de Roulet,
marido de Hélène.
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Frequentando o grupo de amigos de sua irmã, Hélène
conheceu Lionel de Roulet, aluno de de Jean-Paul Sartre que à época era
professor no Havre. Durante algum tempo ela recusou os avanços do rapaz,
sentindo-se ainda ligada ao seu primeiro amor, Jean Giraudoux, o qual no
entanto acabou dando fim à relação quando começou a se tornar uma celebridade.
Mais tarde, Hélène compreendeu que Lionel era o único homem de sua vida. Logo
ela alugou um atelier na Rue Santeuil, no 5º Distrito de Paris, graças ao apoio
financeiro de Simone, então Professora associada de Filosofia: “Com um gesto
seguro, ela instalou seus pincéis, seu cavalete e preparou suas telas. A
verdadeira vida começava.2”
Em 1936, aos 25 anos, Hélène realizou sua primeira
exposição em Paris, na Galeri Bonjean, Rue d'Argenson3. Ao ver suas telas, Pablo Picasso disse que sua pintura era
original. Os críticos a acolheram com simpatia, notando uma forte influência
dos museus nas grandes obras ali expostas. Antes mesmo de sua irmã publicar seu
primeiro livro, a arte de Hélène de Beauvoir já era reconhecida por seus pares.
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Hélène de Beauvoir
em
Portugal.
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Portuguesa lavando
sua roupa no pátio (1942),
Hélène de Beauvoir, Portugal.
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Hélène e Lionel retornaram a Paris após a Liberação
para uma curta estadia. Ele havia sido nomeado Diretor de Informação em Viena,
Áustria, status similar ao posto de Coronel. Como somente oficiais eram aceitos
em Viena, ainda controlada pelos Soviéticos, Hélène precisou entrar para as
Forças Armadas a fim de poder seguir seu marido. A missão era delicada, e novamente
uma longa separação aguardava as duas irmãs. Depois da Áustria, Hélène e Lionel
se mudaram para Belgrado, na antiga Iugoslávia (atual Sérvia), onde as ruínas
da Guerra tornavam o clima ainda mais difícil. Hélène ignorava que o marido estava
a serviço do Gaullismo. Lionel confessaria este segredo a Simone, alguns anos
mais tarde, e ela então pôde compreender seus frequentes desacordos políticos.
Em novembro de 1949, o
casal se instalou em Casablanca por um breve período. Hélène se inspirava em
suas diferentes experiências vividas em Portugal, na antiga Iugoslávia, em
Marrocos e nas suas cores mais vivas; depois se inspirou também na Itália, onde
o Ministério das Relações Internacionais ofereceu um posto a Lionel.
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O Mercado de Flores (1949),
Hélène de Beauvoir.
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Colheitadeiras em
Marrocos
(1949/50), Hélène de Beauvoir.
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A artista
se inspirava nos trabalhos que quase não se viam mais na França. Pintou as “mondinas”
(camponesas italianas). Esta série originou uma exposição em Milão, em 1957.
Apesar das tensões políticas da época, este foi um período próspero para a
artista, que realizou seis exposições fora da França – em Berlim, Mainz
(Alemanha), Pistoia, Milão, Florença e Veneza (Itália).
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Mondina com chapéu
vermelho
(1954), Hélène de Beauvoir,
Itália.
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Assim, os anos que se seguiram à sua primeira
exposição lhe permitiram aprofundar o aprendizado de seu métier e adquirir um
vasto repertório de formas. As estadias em Portugal, na antiga Iugoslávia e em
Marrocos deram novas cores à sua obra obrigando-a, contudo, a trabalhar no isolamento,
rompido em 1950 quando o casal se instalou em Milão. Amadores e críticos, indo
contra a corrente, se interessavam por suas telas: “Querendo representar a
pintura figurativa, a artista se sentia mais próxima dos abstratos que dos
realistas, mas dificilmente poderia se integrar junto a uns ou a outros”5. Paralelamente à pintura, a prática constante
do cinzel permitiu-lhe satisfazer sua necessidade de rigor, liberando-a como
pintora.
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Série Veneza,
Hélène
de Beauvoir, Itália.
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Após ter vivido oito anos em Milão, tendo
encontrado inúmeros artistas dentre os quais Maria Callas, que sensibilizou
muito Hélène, o casal retornou a Paris, instalando-se na casa de Françoise de
Beauvoir, mãe das irmãs, no contexto da Guerra da Argélia. Hélène ganhava a
vida vendendo suas telas.
Rapidamente Lionel foi nomeado para o Conselho da
Europa em Strasbourg e o casal decidiu se mudar para uma fazenda que precisava
ser reformada em Goxwiller. Nessa época, Hélène precisava ir frequentemente a
Paris, pois sua mãe sofria devido a um câncer. Revezava-se com Simone nos cuidados
a Françoise, até o seu falecimento após longo sofrimento que os médicos se
recusaram a amenizar ou abreviar.
Em 1967, as duas irmãs uniram seus talentos: La
Femme rompue (A Mulher Desiludida, Gallimard, 1968) de Simone de Beauvoir, foi
ilustrado com gravuras de Hélène. O fracasso do livro foi uma pena para as
irmãs. Ao que tudo indica, foi a partir dos eventos de Maio de 1968 que Hélène
engajou verdadeiramente sua arte ao serviço da realidade quotidiana. Suas
pinturas cheias de fúria e de esperança representavam a juventude que perturbou
a França naquele ano. Em alguns meses, esta obra maior já contava com mais de
trinta quadros. Esta série, com o controverso título de “Joli mois de mai”
(“Belo mês de maio”) teve dificuldade para encontrar um lugar de exposição,
sendo finalmente organizada no Moulin Rouge, recebendo críticas elogiosas: “Ela
escreve quadros como se mantém um diário. Ela habita as ruas, ela toma
parte, ela pega fogo, ela toma partido,
ela pega seus pinceis. Seu diário não tem apenas o frescor da primavera, ele
tem também a precisão da flecha. Ela nos mostra o que acreditávamos somente
possível aos fotógrafos nos restituir. Mas sua pintura não é de forma alguma
fotográfica: é elíptica, elegante e maligna6.”
O artista e autor alemão Hans Theodor Flemming disse
igualmente na mesma época: “No vasto campo entre o surrealismo e o tachismo,
Hélène de Beauvoir desenvolveu seu próprio estilo. Suas aquarelas transparentes
sobre papel japonês (washi) nos fazem lembrar da arte no Extremo Oriente; por
outro lado, o grafismo preciso de suas gravuras faz reviver o espírito de Braque
e evoca Victor Masson. Mas em toda manifestação artística de Hélène de Beauvoir
reina esta harmonia tipicamente francesa entre a intuição e o intelecto.”
Na Alsácia, Hélène se sentia esquecida, e seu
complexo em relação a sua irmã nunca a deixou realmente. Um dia, surgiu uma
oportunidade de superar isso. Madame Francine Haettel, também chamada Frankie,
havia fundado a associação SOS Femmes Alsace (SOS Mulheres Alsácia) e o segundo
refúgio para mulheres vítimas de violência doméstica aberto na França, situado em
Strasbourg, propôs à pintora de lhe ceder seu lugar como presidente da
associação, já que não poderia acumular este cargo com o de diretora do refúgio.
Após dois anos na presidência da SOS Mulheres Alsácia, Hélène renunciou ao
cargo, mas continuou sua obra militante denunciando a opressão às mulheres em
seus quadros, como “Um homem joga uma mulher às feras”, “As mulheres sofrem, os
homens julgam”, “A caça às bruxas está sempre aberta”. Ela queria mostrar a
opressão às mulheres de uma forma mais radical do que a mostrada em suas séries
rurais de Portugal e da Itália, onde as mulheres viviam condições de trabalho
muito difíceis. Ela se engajou no feminismo mais tarde que Simone, mas este
engajamento durou até o fim de sua vida. Através de sua arte, Hélène quis mostrar
também que é muito difícil para uma pintora se impor num mundo dirigido pelos
homens. Ela ficou magoada pela passagem sobre as mulheres artistas em “Le Deuxième
Sexe” (“O Segundo Sexo”), em que sua irmã não as defende, até mesmo empregando
termos difíceis, sobretudo a respeito de uma das artistas preferidas de Hélène,
Élisabeth Vigée Le Brun7.
A partir dos anos 1970, a carreira de Hélène tornou-se
internacional, quando começou a expor em várias partes do mundo: Tóquio, Bruxelas,
Lausanne, Roma, Milão, Amsterdam, Boston, México, La Haye, Strasbourg, Praga, Paris.
A Word Nasse Gallery de Nova York realizou uma retrospectiva de suas obras
feministas e pró-ecologia. Jean-Paul Sartre lhe rendeu homenagem no prefácio de
uma exposição: “[Hélène de Beauvoir] ‘descobriu muito cedo que, ao fabricar
simulacros, fracassamos em alcançar as coisas. Porém ela ama demais a natureza
para renunciar a se inspirar nela [de fato suas obras se inspiram nas
florestas, nos jardins, nas plantas, nas lagunas, nos animais, nos corpos humanos...]
[…]. Entre as vãs restrições da imitação e a aridez da pura abstração, ela a
inventou seu caminho […]. Nos quadros de Hélène de Beauvoir, emanam uma
alegria, uma angústia, com uma impressionante evidência de imagens cujos
contornos não são traçados. […] é preciso saber […] ultrapassar a aparente
facilidade […]. Assim como num poema as palavras só servem para cercar o
silêncio, entregando ao leitor o que o silêncio não dissolve, em Hélène de
Beauvoir, as cores e as formas são o inverso de uma ausência: a do mundo que
ela faz existir ao não representá-lo.”
Em 1971, assim como sua irmã, Hélène assinou o
Manifesto das 343, reunindo mulheres que revelaram que já haviam abortado3.2.
Nos anos 1980, Hélène foi testemunha no processo de
uma mulher acusada de ter matado o próprio marido, que a espancava. Em
fevereiro de 1986, as duas irmãs compareceram a uma exposição no Ministério dos
Direitos das mulheres, última aparição pública das duas juntas3.3.
Após a morte de Sartre em 1980, Hélène passou a
ficar mais tempo em Paris para ajudar sua irmã, cuja saúde declinava. Ela
estava nos Estados Unidos quando soube da morte de Simone de Beauvoir, em 14 de
abril de 1986. Deserdada pela irmã, Hélène não teve direito a nenhum bem
pessoal nem à obra de Simone. A artista enlutada pintou uma obra, Portrait de Simone en veste rouge (Retrato de Simone em veste vermelha), o
qual ela colocou em destaque na sua fazenda de Goxwiller ao lado do retrato de Lionel,
que morreu alguns anos mais tarde, em 1990. Em 1987, com a ajuda de Marcelle
Routier, Hélène publicou suas próprias memórias8.
Sylvie Le Bon de Beauvoir publicou as cartas de Simone de Beauvoir a Jean-Paul
Sartre onde ela descreve sua irmã como uma artista sem talento. Hélène ficou
profundamente magoada. A publicação das Lettres
à Nelson Algren (Cartas a Nelson
Algren) revela outras palavras indesejáveis (“Eu odeio igualmente esta ideia
de que o talento pode ser comprado graças aos relacionamentos, à amizade, ao
dinheiro, a um padrão de vida elevado”), mas desta vez seus amigos a pouparam
desta leitura.
Hélène voltou a Portugal, país ao qual ela não
havia retornado desde o fim da Segunda Guerra Mundial, para a vernissage de
três exposições consagradas ao conjunto de sua obra do período português. No
final de sua estadia, ela doou suas obras à Universidade de Aveiro que, em
seguida, inaugurou a sala Hélène de Beauvoir, dedicada a exposições de obras de
arte.
Apesar de uma cirurgia de peito aberto, Hélène
permaneceu em sua casa de Goxwiller até a sua morte, assim como Lionel. Faleceu
em 1º de julho de 2001. Sandro, o filho adotivo de Lionel, e a prima Catherine
organizaram seu funeral. Hélène está enterrada no Cemitério do Père-Lachaise,
junto a seu marido Lionel.
Em 2018, a primeira retrospectiva da obra de Hélène
de Beauvoir foi organizada no Museu Würth, em Erstein3.4.
Tradução e Adaptação:
Gisèle Pimentel
Fontes
Fonte principal
Claudine Monteil, Les Sœurs Beauvoir (As Irmãs
Beauvoir), éditions no 1-Calmann-Levy, Paris, 2003.
Notas
1Claudine
Monteil, Les Sœurs Beauvoir (As Irmãs Beauvoir), Éditions nº 1, Paris, 2003, p.
30.
2Claudine
Monteil, op. cit., p. 51.
3 3.1, 3.2, 3.3 e 3.4 Françoise d'Argent, “Hélène, l'autre Beauvoir” (“Hélène, a outra Beauvoir”), Le Figaro,
encarte “Le Figaro et vous”, sábado 03 / domingo 04 de fevereiro de 2018, pg.
30.
4 Simone de
Beauvoir, L’Invitée (A Convidada), Gallimard, Paris, 1943.
5 Trecho do libreto da exposição de 1975 no Palácio das Artes
e da Cultura de Brest.
6 Claude Roy,
a respeito da série “Joli mois de mai” (“Lindo mês de maio”). Trecho do libreto
da exposição de 1975 no Palácio das Artes e da Cultura de Brest.
7Simone de
Beauvoir, Le Deuxième Sexe (O Segundo Sexo), Gallimard, Paris, 1949.
8 Hélène de
Beauvoir, Souvenirs (Lembranças), coletânea realizada por
Marcelle Routier, Paris, Librairie Seguier, Garamont/Archimbaud, 1987.
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